31 de outubro de 2016

O talho no peito abrasado.






A minha dor é semelhante 
a centenas de outras dores comuns. 
Ou algo mais que isso. 
Não há imagem para contê-la 
e descrevê-la. 
Não há autoria, presente ou póstuma. 
Nem algoz. 
Ninguém a testemunhar fora dessa órbita. 
Não fora gravada em tábuas de argila. 
Bem provável tenha precedido 
aos primeiros pergaminhos de couro. 
É rompimento em si mesmo. 
Algo morre restando o informe. 
É no vale que se cultiva a vida. 
Onde se pode correr 
junto a um rebanho de cabras 
sem o pesar pela meninice. 
Não há quem possa julgá-lo. 
E o viés do sonho 
ascende em espiral 
até à profundidade de um ponto. 





15 de janeiro de 2016

Animae




Nos vastos sonhos da morte ela foi criada.
Do abismo negro, despontou embevecida.
Sob as pétalas do gerânio inoculada.
Com o sopro do ardor mais antigo traduzida.


Tearam sob a pele tramas dissidentes.
Querelas torpes, circunstâncias malvedias,
Tropeços, tal enganos de emoções torrentes!
Profusos dissabores negam cortesias.


Na insígnia sagrada imprimais o juramento.
O lume comungais a repelir o biltre.
Não basta a vós da fé – qual viga por sustento –


Bradar sufrágio equívoco de bom alvitre.
Da dor, cuidai, seara de todo o tormento,
Banir o embuste. Impedíeis que o vil infiltre!






9 de outubro de 2015

Aperire veritas.



O Sinal é descoberto
ao soar da gralha
saciada no topo do arbusto.


Canta o sol às concubinas angélicas.
Frenesi incandescente
até o estopim do barítono lampejo.


Gota a gota,
o sedento ainda oferece
o ardil com o qual nutre os espaços.


Todos sólidos estão desfeitos em lama.
Caudalosos como correntezas
a arrastar os nós pelas cicatrizes no chão.


É o Infinito, o mais efêmero,
soberbo em inconstância!
Um fremente insatisfeito!


Vibram estes pingos d’água
enquanto ao quedar
estalam folhagens.


E aquele soar da gralha se inverte
encolhido em saudar o momento solene
como a mudez cálida de uma Ninfa.





22 de agosto de 2015

Pausa de amor no semiárido - IV.





Neste meu ventre já enternecido,
Quedam leves sopros e gemidos


Da brisa, cujas folhas se consomem
Por rastros demarcados de um homem.


Leitosamente, deita a luz macia.
Preguiçosa, esparrama-se num dia.


E eu me perco, luzindo de saudade,
Das raízes aos favos da verdade.


Canta e dorme, pois que já é tarde!
Dos males o pranto ainda arde.


Traz-me miúdas contas de quimeras.
Eu, silêncio dorido de esperas.












14 de julho de 2015

O anúncio da Mariposa.




Resiste o sonho
como um cordão
por suas extremidades
tencionado.
Era ele o abismo negro,
o mistério akáshico
no grande útero da noite.
Desperta o diálogo fecundo.
Prenúncio de um movimento.
Epitáfio de tudo o que é vivo,
que, meramente por viver,
ora se ergue,
ora se dissolve.

“Como chegaste até aqui?”
– indaga a Rendeira.

“Saltando os muros,
alcancei os telhados
das Moradas dos homens.
ouvi um barulho de guizos.
Segui-o e cá estou.”
– responde altiva.

“Muito embora,
parecias dormente...”
– insinua o aracnídeo.
“Vi teu sono.
Tremulavam as notas agudas
de um flautim barroco.”

“Meu sono não era profundo.
Repousava, apenas.
Dispersada a inquietude impiedosa
dos Centauros filhos de Íxion,
retorno ao meu posto,
o Alto do Colina.”

“O que meditavas em tão leve sonho?”

“Dos desejos e das vontades
que me abrigam neste mundo.”

“Qual é o teu desejo, Anjo Lupino?”

“Aninhar-me nos braços
do Homem que amo.”

“E a tua vontade?”

“Rastreá-lo. Alcançá-lo. Detê-lo.
Oferecer-me por refúgio.
Devorar-lhe as carnes
e sorver dele o caldo sagrado.”

“Então queres atraí-lo a ti.”
– conclui perspicaz.
“Não aborrecerás a Mulher?”

“Ela tem procurado
a solitude das letras mortas.
De que servem os símbolos,
se não se aproveitam
os instantes dadivosos
que a vida presenteia?”

“A vida é traiçoeira.
Oferece toda a sorte
de distrações e prazeres
para fiar a atenção,
enquanto aciona o gatilho
para deflagrar a armadilha.”

“A vida é dádiva
que espera em silêncio.
É necessário abrir os olhos
e tomá-la por direito.
Os gravetos e tocos velhos
caídos no chão
educam a acuidade.
As pedras falam aos pés.
Os espinhos e os mourões
tornam a todos resistentes e rijos.
Viver não pode ser
simplesmente vicejar.”

“É justo romper a crisálida
e quebrar os muros do silêncio?”

“O silêncio já fora quebrado.
A Mariposa está pronta!”












28 de abril de 2015

Pausa de amor no semiárido - III



Eu, vazio imenso,
Cativa no espaço
Abaixo do céu
Em que adormeço.


Eu, estriada, anoiteço
Rogo ao sereno
Envolva a superfície
Na qual me rebento.


Eu, lamento indizível,
Converto meu pranto
Em febre e em sonho.
Entorpecida, enrijeço.


Eu, longa espera, consinto
Ao solar impiedoso
Exigir as reservas
Que ainda disponho.


São chagas abertas
Meu solo estriado.
É deserto febril
Num silêncio amuado.


Vapores cálidos
São os sentinelas,
Dançarinos frementes,
Neste leito de cárcere.


Explode um grito
No abrigo soturno.
Despertara o céu
Com clarões inquietos.


Neste ermo espaço
Em que fui despida
Meu espírito reclama
De sede e de fome.